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Quando eu criei o amor

Publicado por:
Vivian Fiorio
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Cresci ouvindo de todos os cantos que amor de mãe é superior a qualquer outro. Mãe ama incondicionalmente, diziam sempre. Uma mãe é capaz de qualquer coisa pelo seu filho, também se falava (e se fala) aos montes.

Eu acreditava, com isso, que para ser mãe já estava pressuposto a capacidade de amar desmedidamente um ser. Afinal de contas, ser mãe de verdade é amar seu filho acima de qualquer coisa e até mais do que a si mesma.

Embora esse discurso seja reconfortante para muitos, a mim soava como uma maldição. Só seria capaz de sentir o verdadeiro amor aquela que gerasse um filho.

Eu não queria gerar um filho, eu não queria um amor obrigatório. Eu queria me colocar à prova e provocar sentimentos em mim e nos outros que não foram predestinados a existir.

Este foi o lado menos romântico da minha motivação pela maternidade adotiva: eu queria ser capaz de sentir e criar o amor onde ele não era “naturalmente previsto”. Como seria esse amor? Seria maior ou menor do que o inabalável amor da mãe biológica?

Então eu cresci e a Laura um dia chegou. Ela não era um bebê, não havia sido gerada por mim, não era fruto sequer de uma relação de amor entre duas pessoas. Ela era a fina reprodução da realidade: um feto resultado de uma transa entre um homem e uma mulher em qualquer condição.

No caso dela, totalmente indesejado. E levou dois anos para que soubéssemos de sua existência, eis aqui uma primeira culpa plantada: não a descobrimos antes, chegamos tarde demais, traumas de abandono foram criados. Sim, maternidade adotiva também nasce com culpas!

Mas o que se sente quando se descobre que seu filho tão esperado chegou? Primeiramente, quero ser cirúrgica: ela não chegou, ela existia e depois de uma lenta, insensível e irresponsável justiça foi possível que soubéssemos de sua existência e pudéssemos manifestar interesse em sermos mães dela.

Não significa, com isso, que a gente chegue sentindo pena da coitadinha da criança órfã ou abandonada. Não há pena, há desejo e ansiedade. Nós vamos ser mães, é só nisso que pensamos. E a idealização é inevitável: vamos chegar lá, a criança vai sorrir e nos chamar de mamãe. E vamos nos emocionar com o momento, leva-la para casa e iniciar uma rotina familiar.

Aí vem a realidade e inicia seus trabalhos…

Laura tinha um histórico. Antes de chegar até ela, tivemos que ouvir tudo e receber orientações sobre como seria a aproximação. E alheia a tudo isso, Laura nos viu assim como quem não imagina quem somos. E de pronto não gostou muito não. Até careta ela fez.

E eu chorei convulsivamente por vê-la. Foi um choro de dor, de sentimentos confusos, de intensidade incontrolável, de expectativas de anos. Aquela pessoa teria que me amar, como eu faria isso?

Como eu poderia chegar para uma menina de dois anos machucada pela vida como muitos de nós nunca fomos e dizer: eu, Vivian Fiorio, personalidade fodida e vida toda cagada, serei sua figura representativa da maternidade (junto a Camila, minha companheira, é claro, só não falo por ela porque, of course, ela teve seus próprios conflitos e não me cabe aqui falar por eles).

Na hora em que me vi sendo avaliada por profissionais, tendo que receber um veredicto sobre minha capacidade de ser mãe daquela menina, não sabia literalmente que porra devia fazer. Eu me encolhi e me apavorei. Eu tive medo de uma menina de dois anos.

E, intimidada, gerei desconfiança, e meus medos infantis brotaram do inconsciente como água. E ela os percebeu, e mostrou também os medos dela. E éramos, nós duas, pessoas cheias de medo numa situação que nunca vivemos antes: ela sendo filha, eu sendo mãe.

E o tal do amor, cadê? Os românticos dirão que ali já havia amor.

Mas não, não havia. Havia um monte de egos feridos e a tentativa frustrada de fazer o outro entender o que se passava. Eu não a entendia, eu tinha medo de não ser capaz de fazer Laura me amar.

De repente, aquela convicção da infância de que eu criaria o amor do nada estava completamente abalada pelo pânico de não ser amada.

Eu não aceitava desistir da Laura, pois não concebia a possibilidade de que o erro fosse dela. Se eu não conseguisse fazer Laura ser minha filha, eu não seria capaz de ser mãe de mais ninguém.

E foi uma dor avassaladora, pois eu não percebia que não se tratava de amor ou não amor. Era apenas o começo de uma relação. E como qualquer outra relação no mundo, não há amor no começo, pois não há também ódio: não há nada, apenas nossas expectativas.

A ligação visceral que sentia com Laura era reflexo de uma sintonia que nós mesmas criamos naquela troca de olhares: quando ela me desafiou com sua marra e eu senti no peito como uma facada.

Mas isso só existiu, e hoje eu vejo claramente, por que eu quis sentir. Eu fui até aquele abrigo aberta para ser ferida. Minha essência pedia por esse choque, internamente eu sabia que nada seria verdadeiro se não fosse profundo.

Então eu aprendi a olhar para a minha dor infantil e separá-la da dor da Laura. E aprendi a ser mãe de um jeito que ninguém mais poderia ser: a mãe que eu podia ser.

Foi preciso meses e muito apoio, muito conforto, muito suporte. O amor demorou meses para nascer. E quando surgiu, foi como se de repente toda a sujeira do mundo desaparecesse, e nenhum medo abalava o que foi criado: o tal do amor incondicional realmente é incondicional.

A gente só entende esse sentimento quando ele dilacera nosso peito. Quando você descobre que aquela outra pessoa veio ao mundo e mudou você, transformou completamente seu jeito de pensar e ver as coisas. E isso é INABALÁVEL.

Foi quando entendi isso que percebi: eu consegui criar o amor.

Sobre a autora

Mãe, jornalista e empresária, tudo ao mesmo tempo e com muita paixão. Desde que se tornou mãe, seu olhar para o mundo mudou e hoje ela procura trazer esse olhar para tudo o que faz na vida.

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